Thursday, October 20, 2005

Feroz 1992 - 2005

Peço desculpa por roubar este texto tão pessoal, mas é uma das coisas mais bonitas que li sobre a morte de um amigo. Retirado do Blog Tasca da Cultura.

Image hosted by Photobucket.com

"Hoje morreu uma boa parte da minha juventude. Morreu debaixo de luzes neon frias, num ambiente asséptico, rodeada por mim e pelos meus pais.Nunca esquecerei o seu olhar de cão antes do último suspiro depois da injecção letal. Tinha um tumor no cérebro que lhe comprimia o sistema nervoso. Os dois últimos dias que os meus pais passaram foram de pesadelo.
Na foto que tirei, atrás, vemos a minha jovem labrador retriever que joga xadrez e tem a mania que está sempre numa missão para salvar o Homem da desgraça final. Ela bem avisa...
Toda a minha vida, praticamente, tive cães. Cresci com cães. Os cães marcaram-me épocas e fases de crescimento.Eu vi a Feroz nascer. Vi, literalmente. Nasceu no armário da roupa do apartamento de onde estou a escrever isto. A mãe, a Garota, cuja morte aos 16 anos abordei também aqui na tasca, escolheu o armário dos sapatos e da roupa e ali fez o seu pequeno covil para dar à luz a ninhada do pai, um cocker galã de nome Timtim e de quem a Feroz herdou a popa. O Timtim ia lá a casa pedir para que lhe tirássemos os cardos e ervas que se lhe prendiam no pouco prático pêlo encaracolado. Ele andava era a galar Garota e aquilo era desculpa...
Subitamente, não tínhamos uma cadela apenas. Tínhamos 5 cadelas e um cachorro a invadir a casa.
Pânico.
Foi fácil arranjar donos cuidadosos para estes cockers exigentes, mesmo antes do aparecimento da internet para fazer forwards. Os cachorros eram irresistíveis.
Em cachorra queria andar para a frente mas andava para trás e sentava-se zangada, a rosnar para o chão que se recusava a andar na direcção certa. Passava a vida a tentar morder os outros para conseguir mamar. Para os distinguir demos nomes padrão aos cachorros. Ainda tentámos dar nomes chiques mas Feroz ficou.
Esta, a 'Feroz', era a mais feia da ninhada.Ela era mesmo o patinho feio: nervosa, ansiosa, assustadiça e temperamental. Foi, obviamente, amor à primeira vista. Os outros cachorros bonitos e perfeitos arranjaram donos num ápice.
A Feroz ficava para mim.
A Feroz tinha um tique nervoso: sorria. Acreditem, sorria. Já li sobre isso e não é um mito. Fazíamos uma careta e ela abanava o rabo a mostrar os dentes num riso nervoso. Era um pouco histérica, isso era. Mal ouvia foguetes escondia-se no meu roupeiro. Mas tinha um sorriso com o seu quê de encantador, apesar do ar ameaçador dos caninos revelados. Lembro-me que sempre que fazia asneiras como estatelar-me no corredor de casa num jogo de basket de apartamento, ela ria-se de mim.
Andei com ela no bolso do meu roupão para todo lado. Cresci com ela. Viu-me estudar, viu-me desesperar com notas, viu-me entrar na universidade e começar a trabalhar.
E distanciar-me.
Hoje saí do autocarro no meio da chuva. Eram 20:30. Fui ao veterinário onde os meus pais aguardavam no carro para poderem entrar. Por um acaso incrível cheguei a tempo. Supostamente tudo aconteceria às 20:00. Entrei no carro e vi a Feroz envolvida num cobertor, no cestinho. Estava inerte, deitada, com as patas da frente esticadas. Quando me aproximei gemeu. Reconheceu-me. O corpo estremceu e ela tentou levantar-se para me acolher. Encostei-me a ela e falei-lhe. Por fim chorei como não chorava desde miúdo. Felizmente nunca perdi ninguém próximo e não acho que as coisas devam ser comparáveis. O que não obsta às minhas lágrimas. Num cão, vemos um ser cuja existência foi dedicada a nós sem qualquer interrogação e que, ao mesmo tempo, absorve todo o amor que lhe queiramos dar. É por isso que sentimos uma tristeza profunda e não apenas uma resignação com os factos da vida e da morte. Sentimos que não merecemos uma dádiva tão grande como a vida de um cão e que se até ele morre, o mundo deve ter forma de compensar isto.
Acompanhei tudo, entrei no veterinário e os três, eu pai e minha mãe, ficámos com a cadela, a fazer-lhe festinhas durante o tempo todo.

O milagre da morte. Ouvi nitidamente o seu último suspiro e os olhos ficaram inertes. Quisémos que a última coisa que visse fosse algo parecido com a primeira. Os donos, com ela.
Senti-me triste por não a ter tratado melhor quando pude, por ter ralhado com ela, por não ter brincado com ela, por ter empurrado o cão quando ele vinha com as patas cheias de lama para me acolher ou não lhe ter dado aquele bocadinho de chocolate extra que ela tanto queria.
Eu sei, depois de hoje, tenho a certeza, que nós homens não somos diferentes dos outros bichos. Veio do mesmo lugar que eu e teve o mesmo destino que eu terei.
A morte da minha querida cadela, ao pé de mim, foi das coisas mais intensas e maravilhosas que me foram dadas a viver. A vida não vale mesmo nada sem estes momentos para que a apreciemos. O milagre da morte, de um corpo que num momento está quente e palpipante e no momento seguinte inerte e frio, é algo de tão fascinante e natural como o nascimento. Há algo que subitamente desaparece dali. Eu sempre ouvi dizer que na natureza, nada se perde, tudo se transforma. E foi isso que senti. Uma transformação de algo. Não uma perda. Não um 'desaparecimento'.
Custa-me a acreditar que o sopro da vida se apague simplesmente e que tudo se resuma a sinapses e reacções químicas que são interrompidas pela morte. Já não acredito nisso.
A morte da Feroz foi uma revelação e agora parece-me tudo mais simples, mas ao mesmo tempo maior e mais bonito.
Sonho com o dia em que volte a ter vida para ter cães no meu dia à dia. As crianças precisam de cães ou gatos.
Deixo-vos só com um conselho da Feroz: caso oiçam foguetes ou trovões, escondam-se no roupeiro pois é, aparentemente, o local mais seguro. Bem hajam!
O Bom Selvagem"

No comments: